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Dizem que, à noite, ainda ouve-se o seu chorar à beira dos rios. Ela derrama as lágrimas amargas da solidão e da culpa e, avançando no silêncio, rasteja nas águas com seus longos cabelos à procura das almas dos filhos mortos por suas mãos de mãe. Aconteceu há muito, muito tempo atrás. Um homem, vindo do mar, amou essa mulher sem nome e teve com ela dois filhos. Mas, um dia, quis ir embora e levar consigo os meninos para casar com outra mulher, mais rica e poderosa. Foi então que aconteceu a tragédia. Uma mãe desesperada afogou seus filhos e se matou. Esta mulher não tem nome, mas tem o rosto de muitas mães que carregam o peso de uma história, de uma estrutura social, de uma relação opressiva. Ela é chamada em vários países de língua espanhola “ la Llorona” (1).
Sgreccia, ao falar do estatuto do embrião, (2) afirma a “autonomia do embrião”, i.é, a dependência extrínseca do embrião do corpo da mãe. Não é a relação com a mãe que faz o individuo, mas o indivíduo existente que faz a relação. Mas como distinguir a existência do imaginário da existência? Nem a Llorona nem o seu homem souberam fazer esta distinção. Os filhos imaginados, como criaturas totalmente dependentes, à mercê das decisões dos que têm poder (os pais, o entorno social), coincidiram com os filhos fora do imaginário, indivíduos diferentes daquelas criaturas sonhadas, frutos de um amor já inexistente. Eles se tornaram objeto de um poder ferido e disputado. A mulher inominável, querendo eliminar seu próprio imaginário, eliminou a carne do outro... Carne do outro tragicamente dependente da sua. A fusão do imaginário com o existente-fora-de-si gerou morte. Parece-me que, assim como estas crianças inominadas, também os embriões sem nome, hoje objeto de tantos debates, sejam só “idealmente” autônomos... ou talvez deveríamos dizer biologicamente! No dia-a-dia das nossas ruas eles dependem de um útero, que depende de um corpo, que depende de uma identidade, que depende de uma rede de relações, influenciada por um contexto social... E dos respectivos imaginários. Mas esta dependência não pode eliminar a alteridade, o mistério que se esconde além daquilo que o outro é para mim, salvando-o da minha necessidade de controle e de posse. Coloca-se, então, um problema sério: quem nos ensina a tolerar a frustração que vem do não poder, do não controle perante o mistério do outro? Que redes sociais cuidam dos pais quando eles se defrontam com o mistério da própria infecundidade? Quem cuida de inumeráveis mulheres inomináveis que estão obrigadas a viver a própria gravidez como uma questão privada? A “privacidade” pode se tornar uma condenação! Ainda uma vez o corpo pode ser caminho. O corpo social entendido como história, tradições, rede que não prende, mas protege para evitar a fragmentação, que educa e acompanha. Talvez a Llorona, envolvida por esse corpo, não teria negado o próprio corpo nem os corpos dos outros. Podem as nossas comunidades eclesiais ser este corpo discreto e presente no seio da sociedade?
Valentina
(1) Llorona significa “aquela que chora muito”. Clarissa Pinkola Estes, psicóloga, psicoanalista junguiana e antropóloga, associa esta história à crise da vida criativa. Cf. CLARISSA PINKOLA ESTÉS. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, pp. 375- 415 (Cap. 10). O texto é acessível também pelo site: http://veterinariosnodiva.com.br/books/MULHERES_QUE_CORREM_COM_OS_LOBOS.pdf
(2) SGRECCIA, E. Manual de Bioética. I – Fundamentos e ética biomédica. São Paulo: Loyola, 1996.
IMAGEM: Gustav Klimt, Esperança. http://expressoriente.blogspot.com/2007_05_01_archive.html
6 comentários:
Bravo! Direitos...princípios... raciocínios... Sem carne, corpo, relação... não salvam aquele que pode ser escolhido para deixar de viver por força do poder de direitos, princípios, raciocínios, salvaguardas, cálculos... mas também pela esterilidade de nossas relações sociais, dos casais, das famílias, dos amigos... e também por uma comunidade de fé mais pronta a julgar do que a lançar-se a acolher, a amparar, a buscar alternativas, a educar sua juventude.
Olá! Valentina, como sempre você está nos presenteando com uma figura feminina. Que por sinal é muito bom para imaginarmos o que os homens não são. Normalmete a falta é sempre atribuída à mulher quando comparada ao homem. Mas acredito que está na hora de mudar este paradigma, pois os homens não podem dar à luz, não podem sofrer a dor do parto, não amamentam, não geram, não fecundam. Sabe que eu senti falta de mulheres teólogas, biólogas e cientistas (mulheres) falarem neste curso de Bioética! Mas graças a Deus eu pude ouví-la, uma voz feminina e que pensa femininamente. Numa relação de fecundação a contribuição do homem "acaba" quando terminou a relação sexual, mas é depois desta relação que para as mulheres começam todo um processo de geração.
Eu sei que é tentador utilizar o embrião para salvar outras vidas, mas como saber de fato que temos o direito de interverir no começo de uma nova vida que precisa de proteção?
Infelizmente nossos diálogos estão terminando, mas quero lhe pedir algo: não esqueça nunca de partilhar conosco estas suas descobertas não mitológicas, mas humanamente humanas. Obrigado.
Se o embrião é um ser, um ser humano, uma pessoa, teologicamente não será então necessário pensar como a encarnação e o nascimento de Jesus podem iluminar esta “privacidade”? Será que o “sim” gratuito e fecundo de Maria tem algo a dizer para nossa história? Que evento passou mais esquecido, silencioso e, talvez, trágico, do que o nascimento do Filho de Deus entre nós? Para onde podemos dirigir nosso olhar hoje quando procuramos Jesus Cristo que está sendo gerado?
“Crescia diante dele como um broto, qual raiz que nasce da terra seca: Não fazia vista, nem tinha beleza a atrair o olhar, não tinha aparência que agradasse. Era o mais desprezado e abandonado de todos, homem do sofrimento, experimentado na dor, indivíduo de quem a gente desvia o olhar, repelente, dele nem tomamos conhecimento” (Is 53,2-3)...
Parabéns Valentina, isto me fez lembrar uma conversa com o chefe de minha pastoral sobre a quantidade de abortos que se tem no mundo de nossas mulheres que batalham dia a dia na realidade da prostituição. É muito alto o numero destas mulheres que optam por essa "saída", sobre todo pela situação social em que elas estão. Elas tomam uma decisão por alguém que não querem que chegue a um mundo, onde a sobrevivência será limitada, também existe uma grande pressão dos outros, essa é a mentalidade esta muito marcada nesse mundo, e que ocasiona muitos traumas nelas que perdem a cabeça por tanto chorar pelo erro da decisão tomada e pela vida que assassinaram; mas, ainda se tem muitas corajudas que vão para o frente, onde a escolha delas é morrer cada dia para salvar aos seus, porque ele decidiu tomar outros caminhos e nem se preocupar pelas conseqüências de seus atos, embora existam também homens que ficaram só com seus filhos, mas eles não se mostram chorando porque você sabe que ainda dizem: “que os machos não choram”, pero se vi homens chorar por um filho que não nasceu...
Obrigada, Joaquim, por mais uma vez me falar de vida. Acredito que na sua pastoral você conheceu muitas "Loronas" e também muitas Marias. E aí, naquele esquecimento dos hoteis que você visita,esquecimento que, como Giangiacomo bem lembrava, Deus quis partilhar consco, que o milagre da encarnação faz-se presente.Se o nosso olhar se dirigisse à terra, esta terra ambígua, de sangue e água, de luzes e incompreesões, viriamos o céu se rasgando e Deus se fazendo presente.
Obrigada, Valentina, porque com sua reflexão você nos põe na lógica da ética do cuidado, pessoal e social por excelência, que vem questionar a do mercado. De fato, tem-se falado tanto de "produzir" embriões, esquecendo-se do mistério do outro que vai além do imaginário do próprio desejo.
Acompanha-se o desejo enquanto gera lucro. Mas e enquanto gerador de vida?
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