Mais uma vez à escola da imagem. O que ela nos dirá quanto às intricadas questões bioéticas, quanto às problemáticas levantadas por Pandora-mulher em relação à dialética sujeito-comunidade, interesses privados-interesses partilhados? O que nos dirá quanto à tensão entre paradigmas na bioética e ao papel da teologia? Na nossa busca encontramos outra mulher: Antígona¹. Ela sabe que a Justiça da cidade não cuida do injustiçado Polonice, seu amado irmão. Então, Antígona se torna mão, pé, braço, corpo vivo que cuida de um corpo já morto, exposto às intempéries e aos abutres. “A idéia que existia um direito natural anterior às determinações jurídicas encontra-se já na cultura grega clássica com a figura exemplar de Antígona” (C.T.I. À procura de uma ética Universal, n.18). Com efeito, esta heroína ferida e forte, ergue-se como defensora do “direito divino”, anterior à “lei da cidade” querida e manipulada pelo tio tirano Creonte. Ela se faz advogada de uma esperança de salvação: do enterro digno do irmão depende seu ingresso no mundo dos mortos. Antígona expressa a lei natural sendo voz de um profundo desejo de salvação que atravessa vida e morte. Estará a lei natural emaranhada nesse desejo? Esta mulher parece falar, como muitas outras, da “urgência” da vida/morte que aparece como necessidade inelutável. Olhando para realidade atual e para as questões que surgem em relação aos cuidados dos corpos vivos e mortos nasce a consciência da ambigüidade do cuidado, da qual deriva a ambigüidade da técnica. Cuidado que se situa sempre entre sujeito e coletividade. Antígona é irmã que chora a morte da sua própria carne, irmã que quer cuidar e para cuidar está disposta a tudo. Isto não nos lembra algo das problemáticas bioéticas atuais? Do justo cuidado, do cuidado a todo custo e da dificuldade de esclarecer a diferença? O que “os deuses dizem”? O que diz o Deus dos Cristãos, Deus Encarnado? Deus do corpo e no corpo... “corpo, caminho de Deus” (A. Gesché; P. Scolas, 2009)? Gesché vê na fraqueza, nessa “carência cheia de desejo” que é o corpo-palavra (Gesché, p.49) o caminho de Deus até nós e o nosso caminho até Deus. Esse corpo disputado entre necessidades/desejos subjetivos e interesses coletivos pode ser a “metáfora concreta”² que ajudará o cristianismo a se repensar e a ser estímulo para a reflexão bioética. Esse meu-seu-nosso corpo, esse corpo-mundo que pede cuidado na vida/morte foi o livro em que Antígona leu a vontade dos deuses.
Valentina
Valentina
¹Para saber mais sobre a tragédia de Sófocle: http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=4841
²Esta expressão é usada pelo psicofisiólogo V. Ruggeri (2002, p.249ss), mas numa nuance e contexto diferentes.
IMAGEM: http://www.agendameperu.com/2009/05/13/yuyachkani-presenta-antigona/
10 comentários:
Eis que meu desejo de inter-esse pela bioética, ao pro-jetar este curso, se encarna - mais uma vez através da poética nas palavras de Valentina - um modo de pensar o cuidado técnico ou tecnicizado na bioética: "Olhando para realidade atual e para as questões que surgem em relação aos cuidados dos corpos vivos e mortos nasce a consciência da ambigüidade do cuidado, da qual deriva a ambigüidade da técnica. Cuidado que se situa sempre entre sujeito e coletividade." Muito bom o post, muito bem pensado. O mais interessante é como Valentina encontrou um filão hermenêutico nas figuras femininas da poética.
Olá! Valntina. Eu poderia lhe responder com um outro mito o de Perseu que é a figura emplemática de um semideus (homem, mas com toda uma inspiração divina), isto é, o homem na sua imanência e na sua transcendência e como "consensuar" estas duas realidades frente aos princípios da bioética?
Mas vou responder com outro dilema na litertura brasileira de Machado de Assis na obra Dom Casmurro na personagem de "Capitu": que com sua força e amor teve os sentimentos cortados pelo marido que represantava uma cultura fechada e sem a possibilidade de dialogar com o diferente. O sentimento que caracteriza o outro, o diferente, é ignorado. Para que bioética aconteça é fundamental a hermenêutica da transculturação.
Legal Valentina. O seu texto é excepcional. Bastante figurativo e nos induz criar uma linha de pensamento para além daquilo que se vê, que se pode tocar. Um olhar abstrato para uma realidade que estar por vir. Chamaria este olhar concreto, apesar de ainda não o ser, de "devir". Aquilo que por muitos é desejado, pretendido. Também me pergunto "o que diz o Deus dos cristãos", este Deus encarnado que é gerador ba vida. E tambem, quem neste mundo de hoje é Antígona? Penso que somos nós, homens e mulheres que buscam incansavelmente o melhor para todos. Este discurso de vida/morte, num contexto de atualidade, nos convida verdadeiramente a um cuidado com estes corpos vivos (HxM)e por que não dizer também sobre os que não mais vivem? Não é o nosso Deus um Deus ressurreição? Pensando na realidade atual também do nosso mundo (que chora como que em dores de parto), retomo o questinamento do Alessandro quando se pergunta até onde os avanços tecnocientíficos abraçam a bioética e avancem pensando,sobretudo, na dignidade deste homem que está por aqui. Acrescento aos verbos postados pelo Ulisses, e,gostaria de acrescentar outros que dão também significado ao têrmo bioética: Bioética também é sair,dizer,arriscar,é não impor, como segue neste poema aprentado pelo professor Nilo, mostrando esta íntegra relação do homem com Deus e vice-versa. Segue poema.
DEUS EXPOSTO
Em teu Filho Jesus te expuseste,
saíste da eternidade à intempérie dos tempos,
e em uma herança corrompida,
divino e humano conosco,aninhou teu amor um vôo de asas solitárias girando até a altura, elevando sem fim o horizonte.
Em teu Filho Jesus te ex-puseste, te encarnaste para dizer-te perto,
na inaudita pretensão de ser todas as línguas e cores em uma carne mortal e reduzida,
de ser uma parábola inesgotável de matizes infinitos pelos séculos,
chegando viva e nova para todos
até o umbral dos sentidos.
Em teu Filho Jesus te ex-puseste, te arriscaste no lugar mais baixo, vigiado,excluído e fracassado,
para oferecer-nos a vida em encontros vulneráveis, na face sem falsidade,
às vezes beijado como amigo e no final triturado sem remédio até a morte e o escárnio.
Em teu Filho Jesus te ex-puseste, não te impuseste com teofanias de fogos e espantos siderais, nem com a sedução astuta, nem com o poder armado, porque somente em encontros livres podem engendrar-se auroras para ressurgir desde a noite mais divinamente amanhecidos.
Alessandro, a esperança nos conforta diante dos desafios atuais......
Um certo dia um homem esteve aqui
Tinha o olhar mais belo que já existiu
Tinha no cantar uma oração.
E no falar a mais linda canção que já se ouviu.
Sua voz falava só de amor
Todo gesto seu era de amor e paz
Ele trazia no coração.
Ele pelos campos caminhou
Subiu as montanhas e falou do amor maior.
Fez a luz brilhar na escuridão
O sol nascer em cada coração que compreendeu...
Que além da vida que se tem
Existe uma outra vida além e assim...
O renascer, morrer não é o fim.
Tudo que aqui Ele deixou
Não passou e vai sempre existir
Flores nos lugares que pisou
E o caminho certo pra seguir
Eu sei que Ele um dia vai voltar
E nos mesmos campos procurar o que plantou.
E colher o que de bom nasceu
Chorar pela semente que morreu sem florescer.
Mas ainda é tempo de plantar
Fazer dentro de si a flor do bem crescer
Pra lhe entregar quando Ele aqui chegar
http://www.vagalume.com.br/roberto-carlos/o-homem.html#ixzz1EAPzu8qI
"Consciência da ambigüidade do cuidado, da qual deriva a ambigüidade da técnica". Esforço-me por não ser um persimista frente à técnica. Agora me vejo convidado (talvez coagido) a vê nela um outro, não como sujeito próprio, como foi proposto pelo produtor do filme "Matriz", mas como símbolo e fruto do ser humano que procura se esquivar do contato próprio de seu agir no mundo.
Trata-se, ao meu ver, da manifestação progressiva do desejo do poder (Assistir ao filme "Clik" = que narra a história de um homem que descobre um controle remoto universal. Em vez de controlar objetos eletrônicos, o controle é capaz de controlar as situações em sua vida. Os problemas acontecem quando o objeto começa a controlar também as escolhas de Michael).
Valentina cita Gesché quando se refere ao corpo-palavra que traduz a fraqueza, “carência cheia de desejo”, estado que indica o caminho de Deus até nós e o nosso caminho até Deus. Com a técnica (como parte de nossa natureza na busca de inovações) faço uma releitura: no coração do ser humano realmente há uma carência cheia de desejo, não para o encontro que transforma, mas para o encontro que controla.
Segundo Carlos Drawin (professor da FAJE), o ser humano já nasce com esse dejeso (carência), tendência. No entanto, nós podemos redirecionar esta inclinação a partir do cuidado, da orientação. Neste contexto, vejo como orientação fundamental a bioética (iluminada pela teologia).
Ler também: “Zen e a arte da manutenção de motocicletas: uma Investigação sobre os valores”, de Robert M. Pirsig
Excelente comentário Jordano!
A veces el desánimo toca a mi puerta cuando siento el monstro de la destrucción planetaria, cuando parece que, para poco o nada sirven las leyes para proteger la dignidad humana, cuando tiene más primacía el capital que la persona.
Desánimo al sentir lo duro que somos de corazón cuando preferimos la comodidad, que a ir cambiando, en pequeños y grandes gestos, comportamientos que permitan un mayor cuidado de la vida, la propia y la de otros.
Al leer el texto de Valentina resuenan dos frases que despiertan la Esperanza y que me desafían a continuar el compromisos por la Vida en abundancia para todos y todas: “Esta heroína ferida e forte, ergue-se como defensora do “direito divino”... Ela se faz advogada de uma esperança de salvação.”
Vale, gracias por tu aporte.
O corpo: uma ponte possível...
“A palavra só é possível num corpo, habitado pelo ritmo do respiro. É no corpo que se aliam espaço e tempo. No ritmo o impulso do desejo descansa e a liberdade encontra seu refúgio para escolher. O instante é suficiente para o grito, o momento médio que se rasga numa distância igual entre início e fim, quando o início e o fim rebentam um sobre o outro, e o respiro é expulsado. Mas a palavra precisa de outra forma de tempo, um tempo que tenha forma: uma duração. Não somente centro pontual, mas lugar, porque o tempo não abandonou totalmente o espaço. Esse lugar original não é verdadeiramente no espaço e no tempo, porque não é no espaço-tempo, mas é ele mesmo o espaço-tempo. O corpo e o ainda-estar-ai do início, a sua permanência no agora. Não um espaço como os outros: um tempo que sabe permanecer. Conhecendo-se no tempo (sentido ou não-sentido), permanecendo no espaço, o corpo é o único espaço-tempo que podemos nomear”.
BEAUCHAMP, Paul. L’uno e l’altro Testamento: compiere le Scritture. Milano: Glossa, 2001. p. 8.
Olá, Ale! Acho que também Antígona nos coloque perante a dificuldade de conciliação do transcendente e do imanente... Na verdade acredito que ela, com seu gesto e sua paixão conjugue muito bem as duas coisas. Morreu para enterrar o irmão: mais transcendência disso? Morreu para enterrar o irmão: mais imanência disso? O que eu quero dizer é que a “preocupação com o corpo” que não é mera materialidade, mas, como eu escrevi, corpo-palavra, fala, falante e falado é casamento perfeito entre imanência e transcendência, entre o aqui e agora e o além, antes e depois. Nosso corpo é história e possibilidade... E Antígona nos diz que o é até na morte. Antígona... e Jesus Cristo???? A Encarnação e o Mistério Pascal não são o transcendente irrompendo na imanência que faz da “temporalidade uns dos lugares da eternidade” (Gesché 2009, p.218)? A teologia tem com a bioética muito para partilhar, confrontar-se, deixar-se enriquecer e enriquecer... Pois seja a teologia que a bioética “mexem” com o corpo! Com corpo humano e com o organismo chamado planeta terra.
Por isso, Adalberto, concordo contigo quando você fala de “concretude” a respeito do meu texto. Penso que o mito seja concreto porque apresenta uma realidade humana transcultural e transtemporal, sem violentar os ouvidos, mas deixando a nós o belo esforço para nos espelharmos neles, encontrando uma resposta.
Jordano, concordo contigo, embora eu acredite que o desejo não seja nem bom nem mau. Se o “controle” que muitas vezes plasma nosso desejo, deve-se ao medo... Ao medo da morte, da aniquilação. Por isso falei da ambigüidade do cuidado. Até o cuidado pode ser movido pelo desejo de controle, pelo medo de perder o outro ou de perder-se. É uma onipotência disfarçada de santidade! À bioética e à teologia a tarefa do discernimento.
Adriana, obrigada também pela sua esperança. Estou convencida que o nosso “fazer teologia”, “pensar bioética” seja o nosso modo de avivar a esperança, muitas vezes esquecida no fundo da caixa de Pandora. Ulisses nos lembrou, pelo menos a mim, a fonte da nossa esperança.
“Permanecendo no espaço, o corpo é o único espaço-tempo que podemos nomear”. Citando o presente de Giangiacomo, palavras de Beauchamp, quero respirar esse e nesse corpo que dá consistência à nossa busca e esperança. Desculpem a extensão das minhas palavras!
Surpreendente, seu texto Valentina! Me fez refletir um pouco, nas diversas formas de ver e viver a vida. Enquanto estava no metrô indo para o centro observava, quanto nos tornamos necessitados da tecnologia. Por que não dizer até escravizados por ela. Nossos relacionamentos já não são os mesmos. Pois, nos tornamos dependentes do MP3, do celular do computador, do carro, do metrô, da TV e por ai vai... parece que não temos espaço para o diálogo e para novas amizades. Mas não há como dizer que a vida sem a tecnologia nos tornaria mais felizes, pois nos acostumamos a ela.
A nossa busca primeira parece estar relacionada na forma natural de ver as coisas na sociedade. Em relação ao que se torna positivo, em nossas conquistas. Deus parece estar em segundo plano. Se é que a lei divina ainda tem espaço na vida do “homem”. O apelo pela lei divina, esta acima das leis humanas? Estamos prontos para deixar-nos tocar por esse Deus amor? Ou preferimos culpar a Deus pelos nossos próprios erros?
No mito, Antígona enfrenta o terror da morte pelo que acreditava. Nós somos capazes de tal proeza? Somos capazes de lutar pela vida, e manter os nossos valores? Os preceitos escritos no coração do povo, no mito de Antígona, estava acima de qualquer lei criada pelos homens. O simples gesto de enterrar o irmão era uma afronta as leis humanas, mas agraciada aos olhos dos deuses. Creontes acreditava na lei do homem e não se importando com as leis dos deuses, arcou com as conseqüências de seus atos. Aquele que se apega em suas próprias forças pode estar se apegando a sua própria miséria. O homem precisa de Deus Para viver bem e ser feliz? Para onde iremos, já que a morte é certa para todos? O que acontece em nossa história, morte, destruição, guerras, maremotos, terremotos, furacões... é culpa de Deus?
Nós cristãos devemos defender a existência de leis morais universais que ainda nos são caras. Ou deixar que o “absolutismo” do homem leve as leis divinas ao declínio? As leis divinas deve estar escritas na mente e no coração do homem, assim como esteve na mente e no coração de Antígona.
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